Ouça a Narração
Bem vindo. Vamos contar a história da serpente falante.
Segundo a mitologia hebraica a derrocada da humanidade teria partido de uma conversa entre a primeira mulher e uma espécie de cobra. No relato a serpente é descrita como sendo o mais arredio e cauteloso dos animais no jardim onde vivia o casal, supostamente por evitar a presença humana, de modo que seria possível que Eva ignorasse suas reais capacidades.Talvez a mulher já conhecesse espécies de aves capazes de imitar a fala humana, e por extensão pensasse que outros animais também pudessem falar. Seja como for, a mulher parece não demonstrar surpresa em ouvir a serpente.
Embora o diálogo reproduzido seja curto, ele é cheio de nuances em suas entrelinhas.
A serpente pergunta se é verdade que o Deus tivesse proibido o casal de comer o fruto das árvores do jardim. Eva corrige a informação dizendo que podem sim comer do frutos das árvores do jardim, mas ressalva que apenas o fruto da árvore que está no centro do jardim lhes fora proibido, para que não morressem.
Nisso a serpente parece se tornar agressiva. Acusa ao Deus de ser mentiroso. Diz que não é verdade que eles correriam risco de morte. Que ao contrário, eles poderiam se igualar ao Deus em conhecimento e que tal conhecimento lhes traria independência.
Eva come do fruto e, mais tarde o oferece a seu esposo, que se junta a ela na rebelião contra a ordem divina. Eles são então expulsos do jardim, para que não comam também da árvore da vida e continuem com isso a viver eternamente.
Quase mil anos depois o aviso do Deus se concretizará. A serpente mentira. Adão morrerá aos 930 anos. Do ponto de vista do hebreu que escreveu a história, para Deus mil anos são como um dia. Então Adão teria morrido no mesmo dia em que comera do fruto, assim como fora profetizado que aconteceria.
O problema nesta história é que nós sabemos que serpentes não falam. Moisés, ou quem quer que tenha escrito este relato certamente sabia disso. Assim como seus leitores. Até mesmo Adão saberia disso, de modo que mais tarde outro hebreu afirmasse categoricamente que ele não fora enganado pela serpente falante.
Como então o escritor poderia esperar que os hebreus que lessem sua história acreditassem nesta impossibilidade?
Simplesmente por entenderem que quem falou não foi a serpente, mas alguém que fez parecer que a voz saia da serpente, como um ventríloquo. Outra história contada pelo mesmo escritor viria a lançar luz sobre esta questão.
Conta que um certo profeta chamado Balaão fora convocado pelos moabitas para amaldiçoar aos israelitas. Para encurtar a história, a jumenta na qual Balaão viajava em dado momento empaca e é espancada por ele três vezes. A jumenta então fala com Balaão, reclamando dos maus tratos. Pouco depois um ser que até então estivera invisível aos olhos de Balaão se deixa ver. Torna-se então evidente que quem falara com Balaão fora aquele ser, embora fizesse parecer que era a jumenta quem falava.
Os hebreus criam na existência de espíritos invisíveis, aos quais chamavam "elohim", que significa deuses. Há vários relatos sobre estes deuses se comunicando com os homens, como mensageiros do Deus. Normalmente invisíveis aos olhos humanos eles teriam o poder de tomer formas visíveis, quando assim desejavam.
O ser invisível que convencera Eva fazendo parecer que uma serpente lhe falava seria originariamente um destes anjos de Deus. Um anjo inconformado com a decisão do Deus em dar àquele casal fraco, feito menor que os anjos, a comissão de administrar um planeta inteiro, quando a escolha mais lógica para ele seria escolher um anjo para tal privilégio.
No afã de evidenciar uma alegada injustiça do Deus, aquele anjo se tornaria o que em hebraico é chamado de "satan", que significa opositor. Alguém que se oporia contra o desígnio do Deus.
Esta história foi escolhida para ser contada aqui porque serve como uma boa introdução sobre como os hebreus se relacionavam com a crença numa dimensão espiritual que estaria além da capacidade dos sentidos humanos captarem a menos que lhes fosse permitido. Ainda teremos muitas outras oportunidades de ver como esta relação influenciou tudo o que foi contado nos escritos hebraicos.
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